terça-feira, 22 de maio de 2012

O rendez-vous do troglodita - 4




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A cortesia, na tacanhez da lógica positivista mais estrita ignoradamente subjacente ao quadro mental de múltiplos “cientistas sociais”, é apenas uma manhosa convenção destinada a evitar os conflitos entre os humanos. Nada mais falso porque superficial, mas que, no entanto, ganhou foros de freudiana sabedoria de café ou de bar, depois das doze badaladas e outros tantos copos. Na realidade, a cortesia que, nos animais, é mera regra comportamental padronizada pelo instinto de conservação individual e do grupo, é, entre os homens, um salto qualitativo dessa necessidade de preservação, pela capacidade, que só eles possuem, de se colocarem na pele do seu semelhante. Por isso dizemos que alguém cometeu um acto “desumano”, isto é, um acto que não teve em conta o sofrimento ou a humilhação de alguém em cujo lugar conseguimos colocar-nos por golpe de imaginação.

Podemos encontrar erotismo em todo o lado, repito. E, naturalmente, nas mais elementares regras de cortesia quando entre duas pessoas de sexo diferente. Os actos adquirem significados diferentes, conforme o contexto, mas há uma gramática erótica institucional. Quando um homem abre cortesmente a porta a outro homem, na maioria dos casos não está subjacente a isso, se se tratar de um acto meramente formal, mais do que o simbolismo respeitante à consideração que o semelhante nos merece, a exemplo do que sucede com a vénia oriental; mas, se for a uma mulher, ao gesto acrescenta-se, implícita e inevitavelmente, uma dimensão erótica que nada tem a ver com o tão falado “assédio” nem com a famosa “compra”. Reconhecer a diferença, inclusive a da maior fragilidade física feminina em geral (mesmo que se trate de uma campeã olímpica do lançamento do peso) e agir de acordo com essa diferença é algo natural no homem. E, além do mais, é giro, porque é a diferença o que dá sabor à vida, não a igualdade; se houver Inferno, a condenação deve consistir em passarmos a ser todos iguais e mantidos vivos no meio desse horroroso e infindável tédio. As mulheres inteligentes sempre souberam perfeitamente que a sua fraqueza é a sua maior força e, por isso, nunca se queixaram; sempre acharam que isso é giro que se farta — é que a inteligência está ligada ao sentido de humor e não à graçola.

Nenhuma relação se mantém, ou, melhor, existe sem a cortesia como expressão de respeito mútuo; e, quando a relação inclui o sexo, sem que ela se transforme em erotismo. É difícil manter o interesse mútuo, manter o nível de erotismo? Não se esquecer de dizer, todos os dias, à mulher que o jantar que ela fez estava bom ou, se nem por isso, dizer que sim… mas sugerir que não está com ela por causa disso, em vez de o engolir sem qualquer referência de apreço pelo trabalho que teve, é exprimir respeito por ela através de um acto de cortesia que é também um acto erótico. O erotismo é o que transforma a sexualidade humana em arte e, como toda a arte, inspira-se nos mais ínfimos pormenores do quotidiano para os transmutar em espírito humano. Seduzir e ser-se seduzido dá cor, sabor e movimento à existência, seja qual for o sexo de quem seduz e de quem é seduzido. Não a sedução que empata, mas a que aumenta o desejo da sua tradução em forma de união carnal, para utilizar uma expressão proscrita pelo irracionalismo ateu devido àquilo para que serviu ao irracionalismo religioso.

O erotismo é feito quotidianamente, mas é feito também de ocasiões especiais, da mesma forma que é imprescindível fazer uma festa de vez em quando para revitalizar o dia-a-dia. O erotismo pode gerar mesmo uma relação ocasional, feita de olhares, de sugestões significativas, de adereços mais ou menos teatrais… até de uma troca de ideias. A expressão “química entre os dois ” é mais um exemplo da persistência do ferrete do primarismo boçal positivista, que viu a Luz nas feromonas. Nem nos animais existem feromonas suficientes para que o macho salte logo para cima da fêmea, saltando por cima de um elementar ritual de acasalamento que nada serve para a reprodução em si mesma. Até os bichinhos gostam de ser um pouco mais do que bichos. E, na nossa espécie, na sua natureza mesma, o erotismo encontra-se, como já disse, por todo o lado. Gozar com um sexy sotaque tripeiro por cima da mesa pode ser uma sugestão erótica tão forte como a que um pé sábio pode dar por debaixo dela. Da mesma maneira que só nos apercebemos integralmente da paisagem em que estamos quando dela nos distanciamos, também só nos apercebemos do significado da pele quando nos distanciamos da sua  mediatidade. O erotismo é a distância que refaz a proximidade porque permite senti-la de outra maneira.

Diz o meu caro CdR que nunca falou em superioridade do velho sobre o novo e muito menos em progresso ou progressismo. E, no entanto, é disso mesmo que não pára de falar. Por exemplo, quando compara, noutro comentário que fez entretanto, algures, O Pátio das Cantigas e O sexo e a Cidade, entendendo a série como sintoma de um avanço na libertação (sexual e não só) das mulheres registado desde há 70 anos. Ou quando apresenta aquele pequeno filme brasileiro com que pretende ilustrar o que às mulheres não era permitido sequer sonhar anteriormente. Segundo o dicionário, designa-se por “progresso” entre dois estados qualquer mudança que resulte numa melhoria registada no segundo em relação ao primeiro. O contrário chama-se “retrocesso”. Se quiser inverter o dicionário, faça favor; mas avise primeiro, que é para eu e os restantes habitantes do planeta podermos ler e pensar em conformidade. Porque eu digo-lhe: há mais erotismo e consequentes promessas de incomparáveis gozos físicos e espirituais (porque é isso que o erotismo possibilita) na franja de Beatriz Costa e nas redondezas abdominais do Vasquinho do que em toda a série urbantronga das deprimentes desventuras quecais da Sarah Jessica Parker e suas irmãs de permanentes desencontros.

É que, repare, quando diz, ainda num comentário jocoso, que a sua mãe achou o filme uma pouca-vergonha, eu também concordo consigo, que aquilo não é pouca-vergonha nenhuma. De facto, aquilo não é uma pouca-vergonha, é uma vergonha insuportável para qualquer animal. Porque aquela triste está reduzida a algo abaixo de macaco, abaixo de cabra, abaixo de aranha, abaixo mesmo da feromona: ela já só quer dentro dela a moca positivista, tal a degradação a que está sujeita; é tanto o seu desespero, que ela come raivosamente o veneno que a mata. O orgasmo que ela exige não é terapêutico, é o punhal da tristeza com que ela mata ambos, o “já que queres que assim seja, assim será!”. Porque à pobre, nem um ritual que qualquer outra fêmea curte, nem sequer a vigarice de uma atençãozinha feita de porrada, lhe é dado! Não é de fazer chorar as pedras da calçada, é de fazer explodir em lágrimas a Vida no planeta inteiro. Ela suicida-se de solidão e de inumanidade e você diz: “Assim mesmo é que é, o progresso que há no suicídio por tortura! O extraordinário humor que há neste filme!”.

O que é de facto espantoso para mim, aquilo que eu não compreendo de todo, é que se o filme fosse sobre a situação inversa, se fosse dele a brutalidade verbal e física com que ela o trata, você, como qualquer de nós, repugnar-se-ia com ela e falaria do asco que aquilo lhe havia provocado. Ainda admito que o filme lhe pudesse provocar alguma hilaridade enquanto explorasse uma simbólica inversão de papéis, embora para mim isso fosse, por tudo o que disse, de humor mais do que duvidoso. Agora apregoar como progresso aquela visão da morte implosiva de uma civilização, Carmo da Rosa…
Não foi por acaso que utilizei a expressão “morte implosiva”. Quando, em resposta ao Lidador, disse, por mais que uma vez, que ele poderia manter-se no passado, mas o certo é que nos países da Europa civilizada, a Europa mais a norte, a coisa se passa assim, nos “vamos lá à queca! e prontes!”, e que isso, afinal, até é bom, veio-me à memória um pormenor de não pequena importância, relacionado com uma pós-graduação que fiz em Estudos Clássicos. E agora, de repente, uma história passada comigo. Começo por esta.

Uns trinta e tal anos atrás, conheci um casal de gente muito-à-esquerda, daqueles que hoje devem andar muito indignados, com aspirações a guerrilheiros… de café do centro da capital, e uma casa na aldeia de sãos costumes comunitários. Ele queria, no porte e na postura, fazer jus ao que julgava que era: um verdadeiro inconformista e revolucionário, em suma, um homem à séria, capaz de pegar numa arma e ir-se a “eles”; ela era esganiçada, feiúca, desenxabida, quase insignificante mas inefavelmente intelectual, como todas as suas irmãs de género deveriam ser. Dizia ela, a propósito já não sei de quê, com um ar libertadérrimo: “Ah, nós somos assim, não estamos com grandes coisas: queres? vamos a isso, e pronto…”. E ele, com ar pràfrentex e algo gingão, tipo Vital Moreira: “Pois, é assim mesmo…”. Julgo não precisar de lhe explicar porque me lembrei disto. Garanto-lhe: foi-me impossível aceitar um segundo convite para ir jantar lá a casa. Que enjoo!

Quanto aos gregos de antanho, a tradição, devo dizer, que ao contrário do que pretende impingir a comunidadegay, a tradição nunca foi o que era. Exemplifico com duas obras de Platão: no (se a memória não me falha) Cármides, temos uma imagem de Sócrates, corado de excitação por imaginar o que poderá estar por baixo da túnica do mancebo que lhe é apresentado; no Górgias, quase ao final, o sofista passa de súbito, sem que consigamos compreender porquê, na tradução portuguesa, a concordar com o que Sócrates lhe diz. Quando se sabe ler um pouco de grego, vê-se que Sócrates lançou mão de um “argumento” muito pouco dialéctico: sugere que Górgias é, além de estrangeiro (o que, para um grego, é um factor depreciativo), sexualmente pervertido, amante de rapazinhos, e, portanto, implicitamente, não tem o direito de falar sobre política. É que a relação sexual com efebos, que, para um ateniense, é um dever cívico enquanto o amor do mais velho tem por justificação ensinar o mais novo a ser um verdadeiro cidadão (e não vou entrar aqui no que isto possa ter de cultural no que respeita aos hábitos sexuais dos gregos de etnia dória nem da sua relação com a guerra), não pode ser motivado pela mera concupiscência, que é uma degradação do carácter. Daí a proibição que, a partir de certa altura, as autoridades decretaram de os (não me lembro se todos, mas pelo menos uns quantos, assinalados) cidadãos mais velhos assistirem aos jogos que se realizavam com adolescentes.

Na antiga civilização grega, porque encontrou na democracia política um ponto de organização que só viria a ter semelhanças com o que o Ocidente encontrou a partir do século XIX, encontra-se problemas curiosa e assustadoramente parecidos com os que temos hoje. Como acho que já disse mais do que uma vez, aqui pelo blogue, sabe-se que se escreveu “A terra a quem a trabalha” nas paredes de Atenas. Os gregos acabaram por perder a independência, conquistados pelo pai de Alexandre. E o que é mais interessante para o que tenho vindo a querer dizer-lhe, é que a decadência política e cultural grega foi acompanhada de, no plano da arte, um retrocesso em cujo final se encontra o erotismo degradado ao plano do boçal, do puramente ordinário, mesmo do simplesmente malcriado. Tire as conclusões que achar por bem, quanto à libertadora mocada troglodita eleita pelo progressista norte da Europa.

Olhe, vou terminar. Creio que não tenho mais nada a dizer, por agora. Mas sou capaz de lhe dar razão, talvez às vezes me alargue demais nas respostas. Talvez, perante o filme que decidiu apresentar como um avanço civilizacional me bastasse ter dito: Aquilo, aquilo, é um avanço cultural e civilizacional…?! Oh Carmo da Rosa,

F…OOODAA-SSSE!!!

E pronto, cada um iria à sua vida.

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