sexta-feira, 22 de junho de 2012

UM POUCO DE PARAÍSO (6)




TRÊS PALAVRAS

  Há, neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o mundo da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).

  Poeta da natureza, António Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica, perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como fica patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.

   E, assim, é um contemporâneo tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo.

     Por último e ainda no continente da Poesia, gostaria de relevar o trabalho incontornável de AS enquanto tradutor – e dou ao termo trabalho, aqui, o seu exacto perfil e conteúdo não só de labor mas de encantamento partilhável, uma vez que é disso que se trata: ser António Salvado, como a meu ver tem sido, o poeta do seu poeta vertido em português sem jaça e com o ritmo próprio e a figura de quem escreve como se em língua lusa este escrevesse.



                                               
G. Chirico, Ariadne
                                                         
                                                                                                                
EPITÁFIO PARA MINHA MÃE

Porque sabias os caminhos
que encontrarias na viagem,
sem desaires nem labirintos
a tua vida foi a simples
maneira de atravessares
no mundo brenhas e neblinas.

Não precisavas de milagres
para aqueceres a tua crença:
afagos de serenidade,
os dias chegavam passavam
com a mesma limpidez quente
e mansa que a fé torna clara.

Desfolho rente à tua campa
os ramos de malvas: lembranças
do cálido peregrinar
das contas puras do rosário
que os dedos do amor rezaram
à espera de um céu alcançado.




Arcimboldo, Primavera


CASA DO AMOR

Foi nas perenes coisas que aprendi
a ser: a casa do amor cercada
de ruas que subiam junto ao fim
do céu que sempre mais se prolongava,

de longo mudos maternais jardins
onde as eternas flores eram lagos
de fragrância ofegante colorida
e os lagos sol em água mergulhado.

E nela: o pão cantado sobre a mesa,
a bilha da ternura a renascer,
a pureza do linho a dedilhar
as palavras nos lábios entoadas…

deito longe a saudade: permanece
a casa do amor, em mim, perene.




Michael Parkes, Juggler



MEDITAÇÃO
                             (à memória de Claudio Rodriguez)


Dos olhos e das mãos brotam as coisas:
inocentes paisagens onde a vida
e a morte se insinuam e comprazem.
Feitas indagação, elas entregam
- mesmo longínquas – o fluir constante
do sangue atravessando o pensamento.
De há muito que o sabemos caminhando:
somente a natureza purifica os sons
da chama inviolável que destrói
enganos: uma flor desabrochada,
rapariga no curvo do distante,
calor do oiro na melancolia.
Daí, que a claridade estenda os braços
a resvalar-se à voz: e invada os veios
exaltados da pureza   e bafeje
para que ouçamos dela o sussurrar,
como um astro súbito   inesperado,
como a verdade plena de harmonia.
Em segredo, o pulsar do coração
traça novos destinos entre areia,
reconstruindo a casa à beira do abismo
solidifica a água das correntes.
Em segredo. Os olhos abrem-se mais
e as mãos, hirtas p’lo frio passageiro,
modelam ouro espaço e outro tempo
para que o canto seja eternidade.





   Nota - Com maior número de poemas, acervo publicado na “DiVersos – revista de poesia e tradução” e no “TriploV” 

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