terça-feira, 10 de julho de 2012

É assim que se faz a estória (3)


NOS ONZE ANOS DO SEU FALECIMENTO
                 
                     Lud, habitante do outro lado do espelho




Lud, Paisagem, serigrafia, col. ns



   A notícia, vinda no JL pela mão de Vítor Silva Tavares, apanhou-me de chofre. Horas antes, já um ex-colega tentara entrar em contacto comigo para me transmitir a triste notícia. E isto porque, à puridade aqui fica dito, a última conversa que tivéramos no dia anterior fora precisamente sobre Lud - Ludgero Viegas Pinto - o pintor e poeta bissexto, o imprevisível Lud que contudo comigo sempre agira como um cavalheiro e confrade fraternal.

  Afinal, o Lud  já estava morto à hora em que concertávamos pedir-lhe desenhos para o suplemento que então co-coordenava e em que combinávamos apanhá-lo, na próxima ida a Lisboa, para uma conversata até às tantas. Mas a vida – a vida que a morte, essa, não tem nada senão negrume – tem destes arrepios, destes desconchavos que nos derribam a alegria. A essa hora, a esse tempo em que congeminávamos projectos que o incluíam, já o Lud lisboeta dos quatro costados e alentejano por casamento e inclinação (como tantas vezes me disse nos tempos em que frequentávamos Monte da Pedra, terra de sua mulher) percorria outros caminhos, outras jornadas de peculiar desenvoltura. Talvez em passo estugado, como usava nos seus bons tempos de empenhado fruidor de ritmos epicuristas, ou em passeio mais pausado desde que uma recomendação de médico lhe aconselhara dietas menos reconfortantes. À hora em que nós o recordávamos pensando para ele diferentes enquadramentos, Lud retoiçava já noutras paragens com o seu atento olho negro de português retinto, o cabelo asa de corvo e o bigode à Douglas Fairbanks dos seus bons tempos.

  Lá por setenta e um setenta e dois, em certo dia apareceu-me na Estação Meteorológica onde eu, pela mão de Vitorino Caramelo, me iniciava como ajudante de meteorologista (única profissão que de facto tive, o resto foi só caminho civil para tratos de existência quotidiana) um sujeito de porte atlético solenemente vestido com um desses fatos azulados que se usavam na década, impecável camisa branca e gravata a condizer. Vinha falar com os responsáveis dum Liceu ou duma Escola do burgo portalegrense para que cordatamente o admitissem como professor de desenho. Propósito louvável, mas algo quimérico. Como pouco depois vim a saber pelo mesmo Pedro Oom que para mim lhe entregara recomendação, só por intemerato desígnio é que Lud se dera a esse périplo de potencial labutador…Com efeito, Lud não era propriamente cidadão que conseguisse estar dia após dia, com esmero, ensinando estudantinhos com propósito e persistência. Ele mesmo se encarregou, digamos, de me esclarecer sobre o inusitado da indumentária, da farpela de dandy: “É só para a entrevista…”, elucidou-me na sua voz educada de alfacinha encartado.
            



Lud, O terceiro, óleo



   De modo que o que lhe ficou dessa viagem algo quimérica foi só um belo almoço na aprazível “Casa Capote” e, dispersa pelos anos, a amizade do signatário.

   De tempos a tempos aparecia-me em Portalegre, em geral acompanhado de um primo amigalhaço ou dum vizinho conterrâneo da esposa e lá íamos nós a caminho da aldeia de Monte da Pedra onde, numa simpática tasquinha a condizer, depois de lauta manducação de petiscos regionais nos entregávamos ao prazer singular e algo desenquadrado da declamação de poemas e ao trautear de algumas canções – manutenção de minha lavra – que o Lud acompanhava com fervor mas sem timbre excessivo…

    Em Lisboa, algumas vezes com Carlos Martins e, pelo menos uma vez, com Luís Osório e Henrique Madeira, demos nossos passeios cortados eventualmente por alguma partida das que gostava de artilhar. Pirraças em vol d’oiseau  mas que nunca indiciavam maldade, antes certificavam um humor de cepa lusitana sem ferocidades.

   Colaborou comigo em suplementos e revistas. Fez capa para um livro meu que não chegou a sair na altura por o seu presuntivo editor ter falido com pequenino estrondo, mas que foi o suficiente para se lhe entravar a rota. Expusemos em conjunto aqui e ali, no país e lá fora com envios pela prestimosa e bendita via postal. E até combinámos, num dia mais sonhador e pachorrento, uma viagem a Itália que o Lud afinal não pôde fruir por mor de outros afazeres e, razão muito ponderosa, por não lhe abundar marcadamente o vil metal.

   Em casa dos familiares próximos do Dr.Feliciano Falcão, conviva e amigo de Régio, está decerto uma obra sua. Foi compra/venda feita durante uma das tais viagens até aos rincões de São Mamede. Por mor desse negócio artístico proveitoso, generosamente, o pintor quis debruçar-se comigo, fazendo do seu bolso as honras do bródio, sobre uma vasta pratada de marisco acompanhada de outros pitéus e líquidos condizentes, numa Casa do ramo bem conhecida ali ao pé do Coliseu da capital.

    Lud tinha mão de pintor e era – para mim sempre foi, como o atesta uma dedicatória iluminada com um desenho e aposta no meu exemplar de um livro de C.W.Ceram – um conversador tonificante ainda que algo deambulatório. Levemente intempestivo para alguns, não sei porquê mas sempre manifestou pelo que aqui o evoca e relembra uma cordialidade afectuosa e um companheirismo intelectual que nunca desceu à zombaria ou ao descontrole. Ares serenos do Alentejo o enlevavam nesses momentos? Não o sei, nunca o soube nem procurei tirar isso a limpo, confesso que jamais pensei muito nisso. Mesmo agora e quando ele se foi e só restou um halo de saudade com uma dúzia de anos.

  Nessa altura senti uma sensível amargura e disse para os meus botões enquanto lhe recordava o perfil desaparecido: “Até sempre, amigo Ludgero. Que descanses coloridamente, já sem as tuas habituais inquietações, na absoluta paz final!”.   
                                                                                                      



Lud, Gato número seis, óleo


Nota do senhor Professor Doutor Administrador deste blogue:
Lud (Ludgero Viegas Pinto) nasceu a 3 de Junho de 1948, em Lisboa, no Bairro de Alfama, tendo falecido em 2001, também em Lisboa, com 53 anos. Apesar de toda a actividade que desenvolveu ao longo da vida, participando em múltiplas exposições e como ilustrador dos melhores jornais e das melhores revistas do país, é hoje um dos mais esquecidos artistas do Movimento Surrealista português. 

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