sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Para o fim-de-semana, com amor


Caros confrades e amigos/as

 Não, não venho falar-vos de absurdo e de desespero - apesar de tudo o que se passa e, temo, irá passando no país, na nação, na pátria.

 Como exemplo mínimo refiro-vos apenas, num segundo, isto que pude constatar pessoalmente: durante bastante tempo as leis que tinham a ver com a circulação automóvel foram deixadas ao deus dará. Com o típico desleixo das administrações e o típico desprezo para com o cidadão luso (?) as Finanças deixavam tudo no vago - e o cidadão desprevenido no vago ficava...

 Pois há meia-dúzia de dias, agora que o Estado está com as calças na mão e tenta, desesperadamente (digo eu com boa-vontade e carinho, pois se calhar o desespero é mas é nosso!) arranjar dinheiro dê lá por onde der, lembraram-se que haveria carros já na sucata ou mesmo já inexistentes, a quem chamar à pedra.

 Vai daí, mihares largos de pessoas começaram a receber da repartição de assuntos tributários, como agora se chamam aqueles serviços, cartas para que pagassem os selos de circulação desses antigos veículos já a fazer tijolo.

 E embora muitos, creio que se calhar todos ou quase todos, tenham apresentado ou estejam a apresentar declarações em como esses carros não circulam (porque não existem) há vários anos, vão ter que pagar selos - em paralelo aos que pagaram pelos carros que de facto utilizaram/utilizam a partir do falecimento dos outros.

 Ou seja e como se diria ironicamente, com uma magoada ironia: nos tempos de Salazar havia mortos que votavam, agora há carros fantasmas que circulam ainda que estejam há anos no pó dos cemitérios de popós, mortinhos da silva!

 Mas vamos ao que de facto importa, que isto foi apenas detalhe em tempos de crise (que nós povinho não provocámos, mas que teremos de pagar porque estamos cheios de pecado, para usar esta expressão para-religiosa...de alguns lúcidos comentadores!

 Quero eu dizer sim que vos remeto, em anexo, um texto analítico - que irá sair em diversos órgãos de comunicação, interactivos e não interactivos, no país e no estrangeiro - em que me debruço sobre um excepcional acervo de foto-colagens dum dos mais representativos autores brasileiros de hoje (como poeta e ensaísta, como tradutor e interventivo viajeiro em toda a América, sendo uma verdadeira placa-rotativa para confrades, para vozes da criação artística, para acções de criatividade em transversal postura): Floriano Martins, de que também vos dou em iluminação 4 dessas Máscaras a que o acervo se reporta e que foram o leit-motiv duma Exposição recente no país irmão.



 Bom fim-de-semana, tanto quanto possível.




 SOBRE  MÁSCARAS de Floriano Martins


Floriano Martins, O intervalo da sílaba
1.    


  As máscaras como representação geral

     Quando se trata com máscaras, procura-se ir para além do lugar comum: máscara como disfarce, como alegoria, como simulação teatral? “Bem te conheço, ó máscara!” é aliás locução conhecida, inscrita num cenário ou de festa ou de período carnavalesco mas que contudo não esgota o significado que a máscara pode ser ou inevitavelmente é em circunstâncias específicas. E muitas vezes tal asserção transtorna os imaginários por esta razão muito simples: a máscara é uma projecção de nós nos outros, havendo todo um “background” histórico que nos impele numa determinada direcção, pois de acordo com especialistas a máscara começou por ser encenação ritual no encalço da imitação do rosto dos “deuses” ou do que como tal se tomava. E depois, com o correr do tempo, esvaziado que fôra esse sentido primevo, passou a ser uma simulação de cariz sacerdotal, dentro dum sagrado já perdido enquanto visão imanente ou dependente dum real que se contemplara.

   Ultimamente, neste nosso tempo dessacralizado e filho dum inconsciente colectivo ou dum subconsciente forjado pelas publi-imagens, ou imagens de substituição, multiplicaram-se as fantasias como por exemplo as provenientes da cultura de massas ou cultura popular assim chamada. Por exemplo as fantasias à Batman que, nesse caso, são a face normalizada e em versão cinéfila dum dos mais antigos mitos do Homem revisitado pelo marketing hollywoodesco: o vingador que sai das sombras mas é portador da luz, o anti-minotauro que, por razões diversas e muito próprias (megalomania positiva, adesão a monomanias justiceiras animais, fervor pelo insólito) resolve colocar os seus poderes de máscara poderosa ao serviço da comunidade ferida pelas prepotências diversas. Que é como quem diz: uma espécie de activista imerso em penumbra planejada que, em vez de transportar consigo soluções sociais permitidas, políticas, de cidadania legitimada, traz para o mundo da razão a força dos seus músculos e o engenho da sua perspicácia num universo societário e conceptual paralelo mas que se torna benéfico e reconfortado (reconfortante?). E a quem a comunidade quotidiana, sem máscara ou com a máscara transparente dos direitos frente aos díscolos, aplaude com ardor, enlevada pelas façanhas desse transformado cuja missão é transformar/modificar  sem se dar a conhecer no seu contexto de personalidade civil.





Floriano Martins, A garrafa esfomeada


   Nesta perspectiva particular a máscara propõe pois o indizível, o impossível aos que não dispõem desse artefacto que pressupõe poderes mais vastos e eficientes. Sem a sua máscara, no caso vertente, o homem-morcego não passa dum argentário vulgar, algo excêntrico e snob mas apenas dono de um lirismo um pouco ingénuo que o aproxima do diletantismo de filho-família. Mas assim que assume a máscara o personagem muda literalmente de figura…

   Sendo uma clara face de substituição, mesmo de transfiguração como ficou sugerido, a máscara é igualmente uma projecção dos nossos continentes submersos, das partes demasiado sugestivas e reveladoras do duplo que se acoita nos nossos compartimentos mais recônditos e que através dela é acordado para as actuações que doutra forma não teriam ensejo de se manifestar. Através da máscara que nos vela e nos esconde, paradoxalmente mostramos então a parte oculta da nossa Lua pessoal. Ao mesmo tempo que nos disfarça, a máscara revela/desvela: o que somos intimamente ou, dizendo doutro modo, o que sem máscara nunca patentearíamos à realidade circundante e colectiva.

   E sendo o teatro (ou o theatrum mundi), como é, a assunção plena da máscara, natural se torna que todos sejamos um pouco actores, ora num plano de recusa ora no da aceitação de uma certa estratégia de saber viver numa sociedade em que as mais graves encenações se apresentam contemporaneamente de forma “aberta” mas num universo em que o grosso da população praticamente perdeu a privacidade na polis em que os donos da realidade fingem que tudo continua a existir normalmente. (Quem não sabe que, hoje por hoje, o reino dos que mandam no quotidiano é uma completa mascarada?).

   Nesta conformidade, o grande e real perigo que nos espreita é que a máscara se nos cole à cara, fazendo com que o imaginário encenado, para uma hipótese mínima de defesa, passe para o lado de lá do palco.

  Que é como quem diz: para o lado de cá da existência em sociedade…





Floriano Martins, A colheita de acasos


2.     As máscaras como representação do artista

   Neste impressionante acervo de quarenta e cinco máscaras proposto por Floriano Martins o que de imediato salta aos olhos é a sua modificação expressiva. Não são máscaras, digamos,  para usar mas para contemplar, para ver, na verdade para que o destinatário – que é o público em geral, se assim me exprimo – se encontre frente ao mistério que elas sugerem. Que elas são – constituindo matéria ora de maravilhamento ora de espanto, ora de inquietação (ora mesmo de medo) frente ao inusitado da transfiguração.

  E tal facto é sublinhado pelos títulos que as certificam, que obviamente as definem tanto no mundo da expressividade como no do humor negro, da surpresa e da eventual estranheza que ante elas se sintam. Máscaras de teatro? Não o afirmarei. Máscaras sobretudo de arte criada por intermédio duma vivência em que o experimentador joga com um certa tradição mas principalmente com os contrastes mais íntimos de quem as pode observar, num jogo incessante (incessado?) de sugestões e de procuras propiciado pelas novas tecnologias de que dispõe hoje em dia um autor plástico capacitado.

    Pela visão do conjunto percebe-se, sente-se, que a máscara com que estamos a contas é todo um engendro patenteado em diferentes recorrências, em diversas visualizações, em diversas montagens calibradas por uma ideia base: elas trazem já em si corpos, transportam subjacentes transmutações carnais, são já o elemento humano que em si-mesmo se transfigurou, se projecta então num universo multifuncional e objectivo que só neste mundo ficcionado cobra a representatividade que lhe é própria fazendo jus à frase canónica de que a Arte, afinal, não é uma verdade mas uma mentira que torna possível a Realidade. Ou seja, por palavras operativas eficazes: que, transtornando a “verdade” que é a mentira global societária em que subsistimos (em que conseguimos ir subsistindo?) atinge e consagra uma realidade mais funda, ou apenas realmente verdadeira, para além do Bem e do Mal que os controladores sociais apresentam como inevitáveis. E que não são mais que impostura num contexto por eles criado e mantido e onde tentam que não tenha lugar a imaginação criadora, pedra philosofal da Liberdade.

   E nestas máscaras compósitas integrando uma intenção, como em toda a verdadeira obra artística, não se detecta uma mística nem mesmo uma metafísica – inúteis e complicativas, alibis para encandear ingénuos ou os que por razões específicas vivem afastados (pois os afastaram) do conhecimento verdadeiro e da sabedoria possível. Estão ali, frente aos nossos olhos, na sua naturalidade e na sua nudez real (e consequentemente surreal, que é a realidade em todas as direcções), constituindo corpo concreto ainda que solúvel numa globalidade que por estes meios se desamarra.

   Aqui, nelas, “on ne peut évidemment s’atendre à une autre jugement sur ce symbol”, como referia Guillaume d’Auvergne citado por Justin van Lennep, “senão àquele que era comum aos alquimistas e aos sábios de antanho”.





Floriano Martins, A garrafa escorregadia

   E é este o justíssimo intuito, a meu ver, deste autor que me habituei a estimar – entendendo nesta palavra o que de salubre e de fundamental existe numa criação visando a permanência duma proposta transfiguradora e, para tudo dizer, intemporal.

                                                      Casa do Atalaião de Portalegre, Setembro de 2012
                                                                                                      Nicolau Saião
     
   (Os textos de ns não seguem os preceitos do Acordo Ortográfico)

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